Tempos houve em que as comunidades eram pequenas, mal organizadas e espalhadas por territórios imensos. Na verdade os territórios não eram maiores que agora, mas aquilo era gente que andava a pé, o que altera a perceção das distâncias. Mais ou menos como quando um gajo se deita no sofá e só depois repara que a empregada deixou os comandos alinhadinhos e ordenados por cores mesmo ao lado do televisor. Aos homens cabia a tarefa de caçar, ainda ninguém comia fruta ou saladas, enquanto as mulheres, que ainda não trabalhavam, ficavam em casa sem fazer puto, só a tratar dos fedelhos, a limpar o pó, a desmanchar os animais caçados, a curtir as peles e, quando não tinham nada para fazer, a esmagar coisas com pedras e paus (o antepassado do crochet) enquanto tagarelavam. Os putos, que já então ficavam facilmente entediados, pintavam porcarias na parede para se entreterem (bonecos mal amanhados a caçar, elefantes com pelo...).
O homem primitivo não era parvo nenhum. Aquilo era gente que não picava ponto, passava a vida no passeio (no fundo o antepassado do delegado comercial) e viviam do que lhes aparecia pela frente. Lamentavelmente, por vezes o que lhes aparecia pela frente era um tigre dentes de sabre e do rescaldo dos encontros um ou outro ficava incapaz de alinhar nas próximas caçadas. Dizia eu, os tipos não eram nada parvos, talvez um tudo nada mais lentos, mas ao fim de vinte ou trinta mil anos lá toparam uma coincidência. Sempre que um gajo ferido ficava pela gruta, passados mais ou menos nove meses aparecia mais um puto.
A coisa foi andando, até que um tipo se chateou com a brincadeira, porque já ia no segundo filho e nunca tinha chegado perto da mulher. Sempre que tentava ela dizia-lhe que estava de esperanças e ele perdia as dele. Bom, o certo é que um belo dia o tipo teve uma ideia que lhe pareceu genial, levantou-se, disse que ia comprar tabaco e saiu. Passado um bocado apareceu com duas tábuas nas mãos, ainda sujas de tinta. Ai e tal, são as tábuas da lei de deus, com os dez mandamentos, isto é do melhor, ora vejam.
A malta lá começou a ler, enquanto tecia comentários.
- Muito bom isto de santificar deus ao sábado! Então é só repetir umas lengalengas, levantar e sentar umas quantas vezes e não se faz puto ao sábado é?
- Sim, sim. Mas continuem a ler.
- Olha, este também é catita. Honrar o teu pai e a tua mãe. O meu pai está quase a fazer anos, vem mesmo a calhar.
- Lê essa merda!
- Não roubarás? Agora? Ainda ontem me fanaram a carteira na feira e agora é que apareces com isto?
- Dá cá isso, eu leio. Não cobiçarás a mulher do próximo, nem o seu servo, nem a sua serva! Ouviste?
- Ouvi pá e isso é uma maçada.
- Hã?
Aquele pretinho que o Isaac agora lá tem é bem jeitoso.
- Hã?
E é este o pilar da religião, uma variação do bicho papão para as crianças que não comem a sopa, lá aquilo do "amigo imaginário para adultos". Dada a precariedade das forças policiais e dos sistemas judiciais do seu tempo, o Homem inventou religiões para regular as práticas e costumes da sociedade e deuses que tudo viam, castigando as faltas e pecados, como fazer filhos com as mulheres dos outros. Com inegável ironia, três mil e tal anos depois temos de reforçar as forças policiais e os sistemas judiciais para evitar que a igreja católica se meta com os filhos dos outros.